sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Pecado Original e Ortodoxia: Reflexões sobre Cartago

Ruínas de Cartago 

Qualquer um que está há algum tempo no meio Ortodoxo já ouviu um argumento como o seguinte: Os Ortodoxos não acreditam no Pecado Original, mas sim no Pecado Ancestral.
Ao menos um livro já foi escrito sobre o assunto, numerosos ensaios de qualidade semi-acadêmica e apelos leigos foram proferidos, podcasts foram registrados, e até mesmo este blog escreveu um artigo sobre este assunto (o blog de publicação original do artigo em inglês é "Orthodoxy and Heterodoxy").

O conteúdo desta posição é geralmente uma versão destilada do livro do Padre João Romanides, O Pecado Ancestral, contendo alguns ou todos os seguintes aspectos:

1.  A Ortodoxia não acredita em culpa herdada como o Ocidente.
2. A Ortodoxia ensina que apenas os efeitos do primeiro pecado foram herdados (a morte, não o pecado).
3. Houve uma importante questão de tradução do grego para os primeiros textos latinos de Romanos 5:12.
4.  Santo Agostinho foi enganado pela questão da tradução acima para inventar uma noção de pecado herdado, incluindo a culpa herdada.
5. Que as doutrinas ocidentais, como o Limbo, se devem à consequência da doutrina de Agostinho (ver também o batismo infantil).

Vamos ignorar por um momento que, em geral, Roma não ensina de fato a culpa herdada. Vamos também ignorar o fato de que o Limbo foi ensinado pelos Padres Gregos antes de ser ensinado pelos latinos e que a doutrina do Limbo tem uma menção litúrgica explícita no Synaxarion no sábado anterior ao da Carne (esta menção é intencionalmente excluída na tradução inglesa supervisionada pelo Metropolita Kallistos Ware por razões desconhecidas). Vamos esquecer também que o Limbo como doutrina existe precisamente para resolver o problema das crianças sem pecado pessoal, daí que uma distinção entre culpa herdada (análoga) e culpa pessoal (atual) é presumida.

Para chegar ao âmago do que a Ortodoxia ensina sobre o Pecado Original, não podemos simplesmente olhar para o que os autores e teólogos disseram ao longo do tempo. A ortodoxia é uma igreja conciliar; como tal, se ela tiver uma doutrina oficial sobre um assunto, ela será registrada nos atos de um concílio. Felizmente, temos esse concílio em Cartago, ocorrido ao redor dos anos 418-419. De fato, este concílio foi assistido pessoalmente por Santo Agostinho e revisou o pequeno inquérito sobre o pelagianismo que ocorreu algum tempo antes em Jerusalém (sua investigação adiou o julgamento para a igreja ocidental). As decisões do concílio de Cartago são codificadas em seus cânones, que foram incorporados ao Nomocanon grego através do segundo Canon de Trullo (692). E tudo isso é para dizer que, na Igreja Ortodoxa, Cartago (418) tem autoridade ecumênica.

Existem dois registros do concílio em Cartago. O primeiro é o mencionado no Nomocanon grego, e o segundo é a edição preservada em latim. As diferenças entre esses dois textos sobreviventes são, às vezes, bastante grandes. Como exatamente essas discrepâncias surgiram não é bem claro, no entanto, as diferenças nos cânones que abrangem o assunto do Pecado Original geralmente não são dignas de nota, com uma exceção que abordaremos em breve. E uma outra diferença entre os textos grego e latim é a ordem numérica diferente.

Os cânones de Cartago sobre o Pecado Original são os cânones CIX-CXVI (em numeração latina, inclusive). Todos os cânones são de relevante leitura, apenas para evitar alguns erros teológicos comuns. No entanto, nós estaremos lidando apenas com um cânone aqui.


Cânone CX (Latim)/ CXXI (Grego) 
[Nota do Enérgeia: Deixamos apenas as traduções dos cânones para o inglês conforme divulgado no texto original do autor, já que há comentários sobre esta tradução especificamente.]

Likewise it seemed good that whosoever denies that infants newly from their mother’s wombs should be baptized, or says that baptism is for remission of sins, but that they derive from Adam no original sin, which needs to be removed by the laver of regeneration, from whence the conclusion follows, that in them the form of baptism for the remission of sins, is to be understood as false and not true, let him be anathema.

For no otherwise can be understood what the Apostle says, “By one man sin is come into the world, and death through sin, and so death passed upon all men in that all have sinned,” than the Catholic Church everywhere diffused has always understood it. For on account of this rule of faith even infants, who could have committed as yet no sin themselves, therefore are truly baptized for the remission of sins, in order that what in them is the result of generation may be cleansed by regeneration.

[Also it seemed good, that if anyone should say that the saying of the Lord, “In my Father’s house are many mansions” is to be understood as meaning that in the kingdom of heaven there will be a certain middle place, or some place somewhere, in which infants live in happiness who have gone forth from this life without baptism, without which they cannot enter the kingdom of heaven, which is eternal life, let him be anathema. For after our Lord has said: “Except a man be born again of water and of the Holy Spirit he shall not enter the kingdom of heaven,” what Catholic can doubt that he who has not merited to be coheir with Christ shall become a sharer with the devil: for he who fails of the right hand without doubt shall receive the left hand portion.]

– Texto Latino

It has pleased the Synod to decree that whosoever denies the little ones newly born from the wombs of their mothers when they are being baptized, or asserts that they are baptized for the remission of sins, but that they have inherited no propatorical sin from Adam obliging them to be purified in the bath of renaissance (whence it follows that in these persons the form of baptism for the remission of sins is not true, but is to be regarded as factitious), let him be anathema;

for no other meaning ought to be attached to what the Apostle has said, viz., “Sin entered the world through one human being [and death by sin*]” (Rom. 5:12), and thus it passed over into all human beings; wherefore all of them have sinned, than that which the Catholic Church diffused and spread abroad every where has ever understood those words to mean. For it is on account of this Canon of the faith that even the little ones too, who are as yet incapable of committing any sin of their own to render them guilty of any offense, are truly baptized for the remission of sins, in order that what sin they inherited from the primordial birth may be purified in them through the process of renaissance.

– Texto Grego

Eu citei aqui os textos em latim e grego para comparação completa. Em geral, os cânones nos dois textos são quase idênticos em significado, mas existem duas discrepâncias dignas de nota.

Primeiro, o texto grego não possui o parágrafo final do texto latino que rejeita o Limbo. Esse Limbo permaneceu uma questão aberta na comunhão romana, uma vez que este ponto indica que Roma considera fundamentalmente essencialmente o que é mantido no texto grego. Assim, podemos essencialmente descartar este parágrafo exceto para notar que a culpa herdada é conspicuamente ausente. Esse ponto posterior é importante, já que, como afirmei acima, a articulação latina de culpa herdada não é canonizada em nenhum lugar (exceto talvez via 'reatus' em Trento, um argumento bastante fraco) e onde é mencionado ele funciona analogamente. Não há nenhum sentido na versão latina deste cânone em que as crianças são enviadas para o inferno porque eles herdarão a culpa.

Em segundo lugar, o texto em latim cita Romanos 5:12 na íntegra, enquanto o texto grego o trunca. Embora esse fato seja verdadeiro, o truncamento é um pouco pior na tradução em inglês do grego (Denver Cummings, 1957). Infelizmente, a tradução para o inglês deixa de fora do original grego καὶ διὰ τῆς ἁμαρτίας ὁ θάνατος. Traduzi isso entre colchetes para corrigir essa omissão gritante. A razão pela qual este erro na tradução inglesa é tão crítica é porque estabelece que o cânon grego afirma, com São Paulo, que a morte vem pelo pecado. A magnitude desse erro em breve se tornará clara.

O Erro de Agostinho em Romanos 5:12?

A afirmação de que as noções teológicas de Agostinho são derivadas de uma tradução incorreta de Romanos 5:12 em latim é infundada. Esta tese observa a obra de Santo Agostinho "Um Tratado Contra Duas Cartas dos Pelagianos" (IV.6). Este argumento presume que Agostinho descarta a palavra “morte” e interpreta incorretamente o antecedente de um pronome. O problema é que, se a teologia de Santo Agostinho fosse baseada apenas nesse erro, seria corrigida por Cartago, onde a tradução é encontrada em sua forma correta, mas não é. De fato, o atual cânon sob consideração mantém a tradução correta e a teologia de Agostinho simultaneamente. Esse argumento é ainda mais fraco quando chegamos ao cânon grego. Definitivamente não há problema de tradução para Romanos 5:12 aqui, já que o grego é a língua original. E, no entanto, algo muito semelhante à teologia de Agostinho é mantido em grego. Se a teologia de Agostinho é apenas o resultado de uma questão de tradução, então certamente teria sido corrigida no momento em que chegou a Cartago, onde os falantes de grego eram comuns, e Trullo, onde o grego era o idioma principal.

A Interpretação de São Nicodemos

“Talvez o mundo grego tenha lido esse cânon de maneira drasticamente diferente do que Agostinho fez?”, alguém poderia perguntar. Felizmente, temos o comentário de São Nicodemos sobre esse cânone para nos esclarecer isso. Lê-se: 

"Essa visão também foi um produto da insanidade herética dos pelagianos: isso se refere à afirmação de que crianças recém-nascidas não são batizadas para a remissão de pecados, como a Igreja Ortodoxa acredita e mantém, mas, ao contrário, que se alguém diz que elas são batizados para a remissão de pecados, as próprias crianças não incorreram em nenhuma mancha do pecado original (ou primordial) de Adão, de tal forma que exigem a remoção por meio do batismo (já que, como já dissemos, esses homens acreditavam que este pecado original não é gerado com o ser humano, simplesmente porque isso não era uma ofensa da natureza, mas uma má escolha da vontade livre e independente). Assim, o Concílio no presente Cânone anatematiza os hereges que dizem isto: Primeiro, porque a forma do batismo para a remissão de pecados que é dada a crianças não é verdadeira de acordo com eles, mas falsa e factícia, pois, segundo eles, esses bebês não têm pecados para serem perdoados. Segundo, porque o Apóstolo deixa claro que o pecado entrou no mundo através de um único ser humano, a saber, Adão, e que a morte entrou pelo pecado, e assim a morte passou para todos os seres humanos, pois todos pecaram como o Adão. Esta passagem, afirmo, não pode ser tomada como significando algo mais do que a Igreja Católica dos Ortodoxos entendeu e acreditou significar, a saber, que mesmo os recém-nascidos, apesar do fato de não terem pecado em razão de qualquer exercício de sua própria vontade livre e independente, no entanto, envolveram sobre si o pecado original de Adão; portanto eles precisam ser purificados através do batismo necessariamente daquele pecado: portanto, eles são verdadeiramente, e não ficticiamente, batizados para a remissão de pecados."

A ênfase acrescentada acima destaca para nós talvez a passagem mais crucial da seção. A articulação é ligeiramente diferente da de Agostinho, mas a ênfase é claramente a mesma. O pecado original é herdado. É perdoado no batismo. A única diferença aparente na linguagem vem da linguagem usada para descrever a relação entre o pecado e a morte.

Visões Gregas e Latinas do Pecado Original

No texto latino, é assim descrito no parágrafo final como uma negativa: aqueles que “não mereceram ser co-herdeiros com Cristo se tornarão participantes do diabo". Note aqui que a teologia agostiniana deste parágrafo (extra) supõe que no no caso de bebês pode não haver ação ou movimento. Portanto, mesmo que o bebê não tenha feito nada, por ele falhar em fazer algo para ganhar mérito, ele está preso ao diabo.

São Nicodemos, por outro lado, articula isso de uma maneira positiva: todos os humanos pecaram e, portanto, todos merecem a morte. Para Nicodemos, não é a inação que merece a morte, mas sim a ação. Essa diferença surge de uma distinção feita por São Máximo. Ele diz, no início do Ad Thalassium 61:

"Mas no instante em que foi criado, o primeiro homem, pelo uso de seus sentidos, desperdiçou sua capacidade espiritual - o desejo natural da mente de Deus - em coisas sensíveis. Nesse seu primeiro movimento, ele ativou um prazer não natural através dos sentidos. ... Após a transgressão, [o prazer da reprodução sexuada] naturalmente pré-condicionou os nascimentos de todos os seres humanos, e ninguém foi, por natureza, livre de nascimentos sujeito à paixão associada a esse prazer; antes, todos foram obrigados a sofrer, e a morrer subsequente, como a punição natural."

Tanto Santo Agostinho como São Máximo partilham uma noção de concupiscência transmitida através da reprodução sexual. Ambos seguem uma fórmula: Gênesis (Criação), Kinesis (Movimento / Atividade), Estase (Descanso). A distinção entre as visões grega e latina do Pecado Original está inteiramente envolvida na questão da transição entre Gênesis e Kinesis. Para a teologia agostiniana, parece haver um estado entre Gênesis e a geração de mérito / demérito. A natureza precisa desse estado é indefinida. Duas explicações possíveis são: 1. nenhum movimento ocorre de forma alguma nesse estado; 2. algum movimento pode ser positivo. No entanto, é claro que, para Santo Agostinho, pelo menos sob a forma do desafio posto a ele, pode ser possível que uma criança morra sem ganhar mérito ou demérito, neste estado, para Santo Agostinho, a criança não ganhou o mérito exigido para o céu, daí a articulação negativa.

Por outro lado, para São Máximo, o primeiro movimento após Gênesis é intrinsecamente desordenado. Essa ação desordenada gera demérito e, portanto, o primeiro movimento de cada pessoa é pecaminoso. Para São Máximo, não seria possível a uma criança morrer sem demérito, já que seu primeiro movimento era demérito e não há temporalidade entre seu Gênesis e seu primeiro movimento. Por isso, tanto para São Máximo quanto para São Nicodemos: todas as pessoas merecem a morte porque todos pecaram. Assim, a articulação positiva.

Dito de outra forma, na tradição latina Deus criou o homem com o seu fim (τέλος) em Deus. O céu, nesta tradição, não é senão o homem que realiza este fim. Pelo pecado, Adão e sua progênie estão alienados de Deus e, como tais, são incapazes, além do batismo, de realizar esse fim. Portanto, a humanidade, além do batismo, “não mereceu ser co-herdeiro com Cristo” e, portanto, “se tornará um participante do diabo”. São Máximo, na tradição grega, leva isso um passo adiante e atribui o pecado real e pessoal à desordem do primeiro movimento de nossa existência. Onde, para Santo Agostinho, deixamos de realizar a vida divina, para São Máximo, temos o pecado real pelo simples fato de nossa existência. A grande ironia aqui é que Santo Agostinho está argumentando a partir da theosis!

Conclusão

Longe de serem diferenças irreconciliáveis, essas duas abordagens são diferenças que dividem os modelos filosóficos, onde a noção de culpa herdada pode existir analogicamente no modelo latino, a culpa é pessoal e real em cada pessoa no modelo grego. Além disso, o modelo latino cai do lado da articulação negativa (falha em obter mérito), onde os modelos gregos usam uma articulação positiva (o pecado real de todos leva à morte de todos). A distinção entre esses modelos é o resultado da articulação de São Maximo da transição de Gênesis para Kinesis.

No entanto, independentemente do modelo usado, uma coisa é certa: os cristãos ortodoxos que desejam fazer uma distinção entre o pecado original e o pecado ancestral terão que lidar com os cânones de Cartago.

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Texto original em Orthodoxy and Heterodoxy: https://blogs.ancientfaith.com/orthodoxyandheterodoxy/2013/08/22/original-sin-and-orthodoxy-reflections-on-carthage/

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