segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Sobre como Deus é Luz que é Percebida e que Transforma - David Bradshaw


'A metáfora mais próxima de algo que está presente e ativo em todas as coisas, sem divisão, é a luz. Desse modo, não é surpresa que na última passagem [São] João [Damasceno] fale da energia divina como uma ''irradiação'' que ilumina toda a criação. Anteriormente ele havia usado a mesma metáfora: ''A Deidade é simples e tem uma simples energia que é boa e causa tudo em todos, como os raios do sol.'' A luz possui uma ação dupla, não apenas iluminando as demais coisas mas também, ao fazê-lo, revelando e manifestando sua fonte. João entende as energias divinas realizando ambas as funções. Ecoando, talvez deliberadamente, a epístola 234 de [São] Basílio, ressalta: ''a partir da organização e governo do mundo sabemos que Deus, que é por natureza invisível, torna-se visível em Suas energias.

A Luz, nestas passagens, é mais do que uma metáfora útil. Por trás dela há uma longa tradição que identifica Deus como a verdadeira luz da qual a luz física é meramente um símbolo. Se voltarmos bastante, ao Êxodo, Deus apareceu aos israelitas como um pilar de fogo. Mais tarde, a Glória [Kabod] do Senhor preencheu o Santuário e o Templo, habitando particularmente acima da Arca da Aliança, onde poderia destruir aqueles que dela se aproximassem sem veneração. No Novo Testamento, Cristo aparece em Glória deslumbrante na Transfiguração, e Saulo é temporariamente cegado pela luz de dentro da qual fala Cristo. Os escritos joaninos levam além essa tendência: O Evangelho de João fala de Cristo como ''a verdadeira luz que ilumina todo homem que vem ao mundo'', e a primeira epístola de João asserta diretamente que ''Deus é luz''. Apesar de tais afirmações evidentemente não terem a intenção de identificar Deus com a luz física, elas tampouco são somente uma metáfora. Elas sugerem que Deus é um tipo mais alto de luz, uma que ilumina as coisas não apenas fisicamente mas espiritual e intelectivamente.

A identificação de Deus com a luz é também proeminente na tradição monástica. Evrágio, com sua ênfase intelectual que lhe é característica, diz que Deus é uma luz que pode ser percebida tão somente pelos olhos do Intelecto. Ele frequentemente fala de como o Intelecto [que tem sua própria luz] pode se ''mesclar'' com a luz divina. Para [São] Macário a luz divina é visível não somente aos olhos do Intelecto mas também aos ''olhos do coração'' e aos ''olhos da alma''. A visão não é somente um espetáculo passageiro, mas algo que transforma o observador, a quem é concedido tornar-se ''a luz de tudo, a face de tudo, os olhos de tudo...tornado assim por Cristo que dirige, guia, carrega, e apoia a alma,e a adorna e enfeita com Sua beleza espiritual.'' Apesar dos Padres do Deserto serem precavidos com alertas com visões e aparições em geral, várias histórias falam da visão da luz divina ou (mais frequentemente) de um monge vindo a brilhar ele mesmo com tal luz. Talvez a história mais surpreendente é a contada pelo Abba José:

''Abba Ló foi ver Abba José e lhe disse, 'Abba, o tanto quanto posso realizo meus ofícios, jejuo um pouco, oro e medito, vivo em paz e, tanto quanto posso, purifico meus pensamentos. Que mais posso fazer?' Então o ancião levantou e estendeu as mãos para o Céu. Seus dedos se tornaram como dez lâmpadas de fogo e ele lhe disse, 'Se você quiser pode se tornar todo chama.''


Mais tarde, autores monásticos como São João Clímaco e Santo Isaac o Sírio falaram frequentemente de uma luz divina iluminando tanto o Intelecto quanto o corpo.

[...]
O misticismo da luz divina se encontra em autores monásticos, e o realismo teofânico dos Capadócios, [São] Máximo, e João Damasceno convergem nos escritos de São Simeão o Novo Teólogo [949-1022]. Mais do que qualquer autor anterior, Simeão apresenta a visão da luz divina como a culminação e objetivo da vida cristã. Ele vai ainda mais longe do que os outros nos detalhes vívidos com que conta suas próprias experiências. Ele relata o seguinte sobre um ardente e jovem leigo chamado George:

''Um dia, enquanto ele recitava 'Deus, tem piedade de mim, pecador', pronunciando mais com a mente do que com a boca, um fluxo de radiação divina repentinamente apareceu vindo de cima e preencheu todo o quarto. Com este acontecimento, o jovem perdeu a consciência [do seu entorno] e esqueceu que estava em uma casa ou sob um telhado. Não viu nada exceto tudo como luz ao seu redor e não sabia se o chão continuava debaixo de seus pés. Não estava com medo de cair, não estava preocupado com o mundo, nem qualquer coisa concernente aos homens e às coisas corporais ocupava sua mente. Ao invés disso ele estava totalmente na presença da luz imaterial e parecia ele mesmo ter se transformado em luz.''

Este incidente contém várias características que também poderiam ser ilustradas por autores monásticos precedentes: a subitaneidade, o êxtase, o senso de identidade com a luz. Simeão também está em consonância com a tradição ao afirmar que a luz divina só pode ser vista pelo Intelecto ou os ''olhos do coração''. Apesar disso, assim como João Damasceno ao discutir a Transfiguração, ele enfatiza que a luz vem a estar fisicamente presente no interior do corpo. Ele escreve nos Hinos que ''após fazer as coisas que Cristo ordenou e as que sofreu por nós....seu corpo brilhará tanto quanto sua alma, e sua alma, por sua vez, será resplandecente como Deus''. Em outro lugar ele afirma que os ''verdadeiros servos de Cristo'': ''Primeiro são preenchidos com inefável regozijo pois não adquiriram o mundo ou alguma coisa no mundo, mas o Criador, Senhor e Mestre de todas as coisas. Então eles são vestidos com luz, com o próprio Cristo Deus, completamente, através da totalidade de seus corpos.''

Esta ''luz de Cristo'' é a Glória incriada. Simeão é enfático ao dizer que a luz que descreve é ''incriada e está além de todas as criaturas''. Como [São João] Damasceno, não pensa que a participação das criaturas em tal luz comprometa de alguma forma a transcendência divina. Deus está ''à parte de toda a luz, transcende toda a luz, todo brilho, é insustentável por qualquer criatura''. O paradoxo de afirmar que Deus é luz e que está além de toda a luz é familiar, pois é o mesmo que encontramos na distinção dos Capadócios entre aousia e a energeia e na doutrina de Dionísio sobre os nomes divinos. Simeão identifica em uma ocasião a luz divina com as energias do Espírito Santo. Mais tipicamente, ele pensa em Deus ''tomando forma'' na luz enquanto permanece além de toda forma: "Deus não se revela em um padrão particular, mas na simplicidade, e toma a forma de uma luz incompreensível, inacessível e sem forma....[então] Ele claramente aparece e é conscientemente conhecido e distintamente visto, apesar de invisível.'' Para Simeão, ainda mais do que para os Capadócios e Dionísio, o paradoxo da Revelação que Deus faz de Si mesmo ao mesmo tempo que permanece além do pensamento conceitual é um dado imediato de experiência. '
Texto de David Bradshaw e tradução de André Luiz

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