quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Onde é o Céu?

A Maior Parte do Tempo a Terra é Plana Parte II

(Depois receber diversos comentários furiosos de típicos cientificistas ao meu último artigo, pensei ser necessário desacelerar as coisas um pouco de modo a me fazer mais claro, e assim vou falar da arte sagrada de modo mais direto na próxima parte dessa série)


Moisés Recebe a Lei. Bíblia do ´Seculo X
Em 1922, Pavel Florensky escreveu um artigo em seu ''Valores Imaginários na Geometria'' em que tenta usar a teoria geral da relatividade para mostrar que, considerando a relatividade do movimento, é possível desenvolver um modelo matemático perfeitamente coerente no qual a Terra é a referência. Esse modelo corresponderia, na verdade, às descrições cosmológicas de Ptolomeu. Esse artigo foi uma das razões dadas pelo Estado comunista para seu julgamento e execução, um piada de humor negro se levarmos em conta a retórica usual da ''religião violenta'' contra ''a ciência iluminada'' que aprendemos na escola primária a respeito da censura a Galileu. O que é interessante sobre o artigo de Florensky é principalmente a razão que ele tinha para escrevê-lo. Ele afirmava que, apesar do modelo copernicano ser bom,

''o sistema de Ptolomeu é preferível dada a sua conformidade com o senso comum e à experiência terrena, por ser verdadeiramente crível, conforme a razão filosófica, e, finalmente, em conformidade com as regras da geometria''.[1]
Pavel Florensky em 1933, antes de ser executado pelo comando de Stalin
Esse impulso encontraria outros seguidores no século XX. Compreendendo o efeito alienante da cosmologia moderna, muitos pensadores reivindicariam a antiga visão cosmológica em diferentes graus e de diferentes maneiras, em um desejo de trazer de volta o conhecimento para a experiência e de empurrar a ação humana de volta para a esfera da ''sabedoria'', que se trata de priorizar o que homem DEVE fazer em relação ao que ele pode fazer. Dentre esses pensadores se inclui C.S. Lewis [2] mas também candidatos bem menos óbvios, tais como os fundadores da escola filosófica de ''fenomenologia'' Edmundo Husserl [3] e Martin Heidegger. Por exemplo, no ''Origem da obra de Arte'', Heidegger reivindica a Terra como categoria metafísica e nos avisa:

''O que esse mundo (Terra) significa está muito distante da idéia de uma massa de matéria e da ideia meramente astronômica de planeta. A Terra é aquilo para o qual retorna e em que é abrigada o surgimento de todas as coisas que surgem -- como, de fato, a coisa mesma que é. Das coisas que surgem, a terra se apresenta como a protetora''. [4]

Essa é uma visão muito bela da Terra, uma que eu ousaria dizer que se adequa à Ortodoxa, da terra como Matrix do mundo, aquela da qual surge todo fenômeno e para o qual retornam ''como de fato a coisa mesma que é'' -- ''do pó você veio e ao pó você retornará''. Mas também descobrimos a Terra como protegendo, abrigando, escondendo a ''semente'' da ressurreição em seu interior.

A formulação de Heidegger nesse caso é tão somente a reafirmação da visão arcaica do Céu e da Terra como os dois ''pólos'' da Criação, as duas categorias metafísicas originais que foram criadas ''no início'', no Princípio, no ἀρχῇ, בְּרֵאשִׁית da criação. Se queremos entender o espaço dos ícones ou das igrejas precisamos encarar o Céu e a Terra, precisamos vê-los como as duas categorias que aparecem universalmente em todas as culturas, seja o grego Urano e Gaia, os chineses Yang e Yin, ou os ameríndios Pai Céu e Mãe Terra.

No artigo de Florensky sobre o geocentrismo, ele usa da Divina Comédia de Dante como base para seu pensamento e até mesmo para seus cálculos. Penso que, embora possamos contestar a ortodoxia de Dante, a intuição de Florensky foi muito profunda. Porque Dante permanece na beira do declínio espiritual ocidental, encarando talvez inconscientemente o esvanecimento gradual de todo o Realismo simbólico da experiência ocidental [5] Nessa posição, Dante cria em sua Comédia uma bonita síntese de um cosmos tradicional enquanto realiza vários pronunciamentos quase proféticos e ao mesmo tempo esclarecedores e admoestações para o leitor moderno. [6]

Dante se move, na Divina Comédia, por uma jornada espiritual para baixo, para o centro da Terra, e então se move para cima para a montanha do Purgatório, e finalmente escala as esferas celestes como se todo o cosmos fosse uma escada em que:

''[...]Todas as coisas quaisquer que sejam
Estão ordenadas entre si, é dessa forma
Que o Universo se assemelha com Deus.
Aqui as criaturas superiores vêem as pegadas
do Poder Eterno...''

Esse tipo de hierarquia está, claro, profundamente baseada na ''Hierarquia Celeste'' de São Dionísio Areopagita, que reinterpreta o pensamento neoplatônico em um molde cristão. De certa maneira, Dante une a hierarquia ontológica do Areopagita com a Escada de Virtudes que encontramos em São João Clímaco. No canto 29 do Paraíso, Dante alcança a esfera mais elevada da Criação, o Primeiro Motor. E ali, Beatriz, sua guia, une belamente a visão Ptolomaica com as idéias de Aristóteles ao afirmar:

''A Ordem foi co-criada e construída
Em substâncias, e o cume do mundo
Foi aquele em que o Ato Puro foi produzido.

A Pura potencialidade susteve a parte inferior;
A Intermediária uniu a potencialidade com o ato
Com tal vínculo que jamais será desfeito''

Essa união das categorias metafísicas de Aristóteles em um modelo cosmológico que coloca o Céu e a Terra como os dois pólos da Criação repete com muita clareza para nós ''o que'' Céu e Terra são. Essa dualidade entre ''ato'' e ''potência'', ''energeia'' e ''dynamis'', espelha perfeitamente a visão bíblica da Criação em que o Logos de Nosso Pai nos Céus comanda a Terra a ''gerar'' a criação, poderíamos dizer a ''apresentar'' o mundo se quisermos usar a linguagem heideggeriana.

Em cana nível da escada cósmica de Dante, toda atividade humana é vista hierarquicamente como mais próxima ou mais distante da Luz Divina, participando em Deus ''na medida de sua capacidade'', para parafrasear São Máximo.

''...tudo torna belo o primeiro círculo
E possui a doçura da vida em diferentes graus
Ao sentir mais ou menos o sopro eterno''

Dante e Beatriz ascendem em direção ao Sol. Manuscrito Italiano do Século XIV.
Na medida em que Dante escala as esferas planetárias, encontra diferentes níveis de almas na Lua, em Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno. Mas, como que para precaver o leitor de ficção científica moderna de algum tipo de interpretação materialista, Beatriz explica a Dante no nível inferior do Céu que as almas:

''...mostram-se aqui, não porque repartida
Esta esfera tenha sido entre eles, mas para sinalizar
O celestial a partir do que é menos exaltado.

Falar assim é adequando à sua mente,
Visto que somente por meio dos sentidos é apreendido,
Aquilo que é então digno do intelecto.

Por causa disso as Escrituras condescendem
Com suas faculdades, e atribui pés e mãos
a Deus, embora significando outra coisa;

E a Santa Igreja sob um aspecto humano
Representa Gabriel e Miguel para vocês,
E aquele que fez de novo Tobias completo''.

A aqui temos a cruz. Aqui se encontra o ponto em que o leitor moderno pode se extraviar e em que é importante puxar as rédeas de sua mente. Beatriz está dizendo a Dante que as almas não habitam as esferas celeste visíveis dos planetas, mas que isso é encontrado assim por uma ''concessão'', isto é, a descida de uma verdade mais elevada em uma linguagem passível de ser alcançada. Ela então lhe diz que isso se aplica às Escrituras também. Dependendo se o leitor é de um tipo ''conservador'' ou ''liberal'', ele ou ela podem ficar ou particularmente ofendidos ou sentir-se maravilhosamente liberados por tal proposição, pensando: ''Aha!, ele está dizendo que suas próprias descrições assim como também as das Escrituras são MERAMENTE simbólicas, metáforas!", implicando um tipo de liberdade para que qualquer outra imagem pudesse ser usada de modo a transmitir a mesma mensagem.

É claro que aquilo que Dante diz através de Beatriz era óbvio para os antigos. É por causa disso que a Bíblia fala do Céu dos Céus (algumas vezes traduzido por Céu Superior). E apesar do fato de podermos dizer sem vacilar ''Nosso Pai que está nos Céus'', sabemos claramente que nem mesmo ''Os Céus dos Céus podem Te conter'' (1 Reis 8:27). Mas afirmar que Deus está nos Céus é a imagem mais adequada para Deus, não é arbitrária ou simplista ou materialista, mas está ancorada analogicamente no que encontramos acima de nós, da maneira mesma em que ''porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas'' (Romanos 1:20) Isso não é somente caso de interpretação de histórias e textos mas é o modo mesmo em que os Céus se apresentam a nós, o modo mesmo através do qual, por seu ''logos'', todos os fenômenos apontam para a vida Divina. Os céus visíveis SÃO uma imagem dos Céus dos Céus, e eles são a melhor imagem para a hierarquia espiritual.

Mas o que é esse céu vísivel, que é esse ''acima'' que nos ajuda a entender Deus? A linguagem das alturas está tão entrelaçada a nossa linguagem que constantemente nos referimos à hierarquia das coisas como superiores, estando no topo, no cume, ascendente ou caindo. Mesmo o mais ateu dos materialistas cientificistas não consegue evitar tais expressões de hierarquia celeste.

No Romance ''O Pêndulo de Foucalt'', de Umberto Eco, há uma cena supreendente em que a personagem feminina principal, como uma Beatriz invertida, tenta derrubar todo o simbolismo religioso. Ela reduz tudo ao corpo humano e à experiência corpórea, começando por afirmar que ''os arquétipos não existem, o corpo existe''. Ela diz muitas coisas que intencionam chocar, é claro, mas quando chega á idéia do céu afirma:

''alto é melhor do que baixo, porque se você abaixar a cabeça, o sangue vai pro seu cérebro, porque os pés fedem e a cabeça não fede tanto, porque é melhor subir em uma árvore e pegar um fruto que terminar no subsolo, alimento para os vermes, e porque você raramente se fere ao bater em algo acima de você -- você realmente teria de estar no sótão -- enquanto você frequentemente se machuca ao cair. Daí porque em cima se encontra o angélico e abaixo o demoníaco''.

E então em relação à verticalidade:

''a posição vertical é vida, aponta na direção do sol, e o obeliscos são posicionados como as árvores, enquanto a posição horizontal são o sono e a morte. Todas as culturas cultuam menires, monolitos, pirâmides, colunas, mas nenhuma se prostra para varandas e grades. Você já ouviu falar de um culto arcaico ao balaustre sagrado? Percebe? E um outro ponto,: se você venera uma pedra vertical, mesmo que sejam muitos de vocês, todos podem vê-la; mas se você adora, ao em vez disso, uma pedra horizontal, somente aqueles na fileira da frente podem vê-la, e os outros começam a empurrar, ''eu também'', ''eu também'', o que não é uma visão adequada para uma cerimônia mágica...''

Se pelo menos a maioria dos cristãos possuísse essa intuição muitos problemas seria evitados! Embora pareça irreverente no início, e é claro que ela tem a intenção de ser, também esconde algo ainda mais profundo. Beatriz, a guia de Dante, como se antecipando a tais argumentos nos conta que ''falar assim é adequado para nossa mente, já que somente pelos sentidos é apreendido aquilo que é digno do intelecto''. O Simbolismo é inteiramente intuitivo, está plenamente em sintonia com o modo com que experienciamos o mundo. Tudo o que a protagonista de Ecco diz é verdadeiro. Só que ela consegue perceber a analogia descendente e não consegue perceber a mesma analogia quando aplicada para cima! Qualquer um que tenha visto algo apodrecendo se tornar terra, mas que plantou uma semente nessa mesma terra para vê-la crescer, pode entender o que a Terra é. Se você puder ver que alguém em um grupo de pessoas colocado acima das demais imediatamente se torna o centro, o foco, pelo fato mesmo dessa pessoa conseguir ver todas as demais e as demais poderem vê-la -- enquanto uma outra pessoa no meio de outro grupo só consegue enxergar aquelas que estão próximas delas --, então imediatamente terá um vislumbre do Céu. Se colocar seu rosto no chão, terá uma visão ''particular'' e limitada, poucas porções de grama e talvez alguma poeira, mas se começar a subir em uma montanha, então vai entender o que é o Céu, pois na medida em que se elevar, vai enxergar mais e mais, sua visão vai englobar mais da Criação ao seu redor como se você estivesse no cume do mundo. Ali alguém pode alcançar a relação entre os Céus, a verticalidade e o centro. Ali alguém pode ouvir Deus.


Escada da Divina Ascensão
Mas para entender esse simbolismo demos nos apartar em primeiro lugar da visão exterior, que aliena -- e que é amplificada pela visão da ciência moderna e da tecnologia --, pelo menos um momento, e tentar enxergar o mundo de maneira mais imediata. Os ícones e outros espaços sagrados podem nos ajudar, pois ainda que sejam ''artificiais'' no sentido de que são feitos pelo homem, agem como uma espécie de memória em nosso estado confuso, podem nos revelar aquilo que a arte faz ao refinar e apontar claramente como o mundo pode ser experimentado à luz de Seu Criador.

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1. Pavel Florensky. Imaginary Number in Geometry, 1922 (Minha tradução)
2. Veja por exemplo, CS. Lewis.The Discarded Image.
3. Veja por exemplo, Edmund Husserl. “The Original Ark, Earth, Does Not Move”.
4. Martin Heidegger. Origin of the Work of Art, in “Off The Beaten Track”, traduzido por Julian Young e Kenneth Hayes, Cambridge Press, 2002.
5. Na verdade, Dante percebeu em seu tempo a transição entre o pintor icônico Cimabue e Giotto, que é como uma curva para a Renascença
6. Dante usa na verdade a Terra esférica em seu modelo cosmológico e o faz de uma maneira que é bastante poderosa e convincente para unir a mais antiga visão hierárquica do céu e da terra ao modo como experimentamos uma esfera no tempo como um movimento cíclico. Isso nos mostra que mesmo o modelo cosmológico moderno poderia potencialmente ser um suporte para as verdades espirituais embora não tenha visto ninguém que tenha conseguido fazer isso de modo convincente hoje em dia.

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