domingo, 19 de julho de 2015

Sisoés O Grande e a Contemplação da Morte


por John Sanidopoulos
tradução: André Luiz V.B.T. dos Reis

O famoso ícone de São Sisoés contemplando a tumba de Alexandre o Grande recorda certos trechos do 'Fédon', de Platão, sobre o mistério da morte e de como um filósofo verdadeiro e amante da sabedoria deve abordá-la: ''os que praticam verdadeiramente a Filosofia, de fato se preparam para morrer, sendo eles, de todos os homens, os que menos temor revelam à idéia da morte. Basta considerarmos o seguinte: se de todo o jeito eles desprezam o corpo e desejam, acima de tudo, ficar sós com a alma, não seria o cúmulo do absurdo mostrar medo e revoltar-se no instante em que isso acontecesse, em vez de partirem contentes para onde esperam alcançar o que a vida inteira tanto amaram - sim, pois eram justamente isso: amantes da sabedoria - e ficar livres para sempre da companhia dos que os molestavam? Como! Amores humanos, ante a perda de amigos, esposas e filhos, têm levado tanta gente a baixar voluntariamente ao Hades, movidos apenas da esperança de lá reverem o objeto de seus anelos e de com eles conviverem; no entanto, quem ama de verdade a sabedoria, e mais, quem está firmemente convencido de que em parte alguma pode encontrá-la a não ser no Hades, haverá de insurgir-se contra a morte, em vez de partir contente para lá? Sim, é o que teremos de admitir, meu caro, se se trata de um verdadeiro amante da sabedoria. Pois este há de estar firmemente convencido de que a não ser lá, em parte alguma poderá encontrar a verdade em toda a sua pureza. Se as coisas se passam realmente como acabo de dizer, não seria dar prova de insensatez temer a morte semelhante indivíduo?''

É claro que na tradição Ortodoxa, ao contrário da filosofia platônica, o próprio corpo é bom enquanto criação de Deus. O homem não está completo a menos que possua tanto corpo quanto alma, e daí o grande horror da Queda que nos torna escravos das paixões, levando à morte e à separação entre alma e corpo. Daí também o grande significado da ressurreição de Cristo, que conquista a morte para nos liberar do temor da morte que nos faz escravos das paixões e desejos da carne, unindo a dicotomia de corpo e alma através de nossa própria ressurreição dos mortos.

Platão continua explicando a futilidade de uma vida voltada para os prazeres do corpo e explica como o verdadeiro filósofo, disciplinado pelo ascetismo, alcança através da morte aquilo que ele deseja -- sabedoria, verdade e a liberação das paixões que apenas nos tornam cada vez mais próximos da morte: ''Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta, pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes, que são outros empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez, imaginações de toda a espécie e um sem número de banalidades, a tal ponto ele nos satura, que, de fato, como se diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o conhecimento do quer que seja. Mais, ainda: guerras, batalhas, dissensões, suscita-as exclusivamente o corpo com seus apetites. Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que nos vemos forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados a servi-lo. Se carecermos de vagar para nos dedicarmos à Filosofia, a causa é tudo isso que enumeramos. O pior é que, mal conseguimos alguma trégua e nos dispomos a refletir sobre determinado ponto, na mesma hora o corpo intervém para perturbar-nos de mil modos, causando tumulto e inquietude em nossa investigação, até deixar-nos inteiramente incapazes de perceber a verdade. Por outro lado, ensina-nos a experiência que, se quisermos alcançar o conhecimento puro de alguma coisa, teremos de separar-nos do corpo e considerar apenas com a alma como as coisas são em si mesmas. Só nessas condições, ao que parece, é que alcançaremos o que desejamos e do que nos declaramos amorosos, a sabedoria, isto é, depois de mortos, conforme nosso argumento o indica, nunca enquanto vivermos. Ora, se realmente, na companhia do corpo não é possível obter o conhecimento puro do que quer que seja, de duas uma terá de ser: ou jamais conseguiremos adquirir esse conhecimento, ou só o faremos depois de mortos, pois só então a alma se recolherá em si mesma, separada do corpo, nunca antes disso. Ao que parece, enquanto vivermos, a única maneira de ficarmos mais perto do pensamento, é abstermo-nos o mais possível da companhia do corpo e de qualquer comunicação com ele, salvo e estritamente necessário, sem nos deixarmos saturar de sua natureza sem permitir que nos macule, até que a divindade nos venha libertar. Puros, assim, e livres da insanidade do corpo, com toda a probabilidade nos uniremos a seres iguais a nós e reconheceremos por nós mesmos o que for estreme de impurezas. É nisso, provavelmente, que consiste a verdade. ''
Aqui, Platão encoraja uma vida de pureza que dê uma consideração mínima ao corpo de modo a sujeitá-lo à alma. Ele continua afirmando que o filósofo e amante da sabedoria, ao fazer isso, alcança um estado de iluminação. Isso está de acordo com o ensinamento cristão de que uma alma e um corpo que não se purifica não pode se tornar Templo do Espírito Santo. A purificação vem através do ascetismo e da oração, e da vida em união com Cristo e a Igreja. Assim como Nosso Senhor alertou os discípulos para ''vigiar e orar para que não caiam em tentação, porque o espírito está pronto mas a carne é fraca'', assim também os cristãos são alertados para se precaverem contra a tentação conferindo ao espírito poder sobre a carne através do ascetismo. A iluminação dada não vem de nós, mas é um dom do Espírito Santo, de Quem devemos nos tornar Templo.
Platão continua perguntando: ''E essa separação, como dissemos, os que mais se esforçam por alcançá-la e os únicos a consegui-la não são os que se dedicam verdadeiramente à Filosofia, e não consiste toda a atividade dos filósofos na libertação da alma e na sua separação do corpo? Sendo assim, como disse no começo, não seria ridículo preparar-se alguém a vida inteira para viver o mais perto possível da morte, e revoltar-se no instante em que ela chega?''

É apenas à luz disto que os grandes esforços ascéticos dos Padres do Deserto fazem sentido, como também daqueles monges e ascetas contemporâneos (e inclusive das práticas ascéticas dos cristãos que vivem no mundo).

Muitos incidentes da vida de São Sisoés podem ser encontrados nos ''Ditos dos Padres do Deserto'' (Apophthegmata ton Pateron). Este santo, grande e renomado entre os ascetas do Egito, viveu no quarto século em Scete da Nítria. Depois da morte de Santo Antão, deixou a cidade e passou a viver em sua caverna, que se encontrava abandonada, dizendo: ''e assim, na caverna de um leão, uma raposa fez sua habitação''. São Nicolau Velimirovic escreveu sobre ele em seu ''Prólogo'': ''Impondo difíceis trabalhos sobre si mesmo, ele se humilhou tanto que se tornou modesto e pacífico como um cordeiro. Por causa disso, Deus conferiu a Sisoés graça tão abundante que ele se tornou capaz de curar os doentes, expulsar espíritos impuros e ressuscitar os mortos. Sisoés levou uma vida de mortificação austera no deserto por sessenta anos e foi uma fonte de sabedoria viva para todos os monges e leigos que o procuravam buscando conselho e orientação''.

Aqui estão alguns dos ditos sábios e feitos ilustres desse grande Padre do Deserto:

- São Sisoés ensinou aos monges: ''Independente do modo como a tentação venha ao homem, ele deve se entregar à Vontade de Deus e reconhecer que a tentação ocorre por causa de seus pecados. Se algo de bom acontece, deve dizer que ocorre de acordo com a Providência Divina''.

- Um monge perguntou a Sisoés: ''Como posso ser agradável a Deus e ser salvo?'' Ele respondeu: ''Se você deseja agradar a Deus, desista do mundo, se separe da terra, ponha-se à parte da criação, aproxime-se do Criador, una-se a Deus em oração e lágrimas e então você vai encontrar repouso nesse tempo e no futuro.''

- Um outro monge perguntou a Sisoés: ''Como posso alcançar a humildade?'' O Santo replicou: "Quando uma pessoa aprende a reconhecer cada homem como superior a si mesmo, então com isso ele conquista a humildade.''

- Ammon reclamou com Sisoés que não conseguia memorizar os ditos sábios que ele lia de modo a repeti-los nas conversas com os homens. O Santo replicou: ''Isto não é necessário. É necessário alcançar a pureza de mente e falar a partir dessa pureza e colocando sua esperança em Deus.''

- Um outro irmão perguntou a Abba Sisoés: ''Eu caí, Abba; o que devo fazer?'' O ancião respondeu-lhe, ''Levante de novo''. O irmão disse, ''Levantei, e de novo voltei a cair''. O ancião disse, ''Levante de novo e de novo''. Então o irmão perguntou, ''Quantas vezes?'' O ancião respondeu, ''Até que você seja levado [pela morte] ou em virtude ou em vício. Pois um homem se apresenta ao juízo naquele estado em que se encontra.''

- Um dia um homem chegou mostrando desejo de se tornar um monge, e ele tinha um filho. Sisoés ordenou-lhe para atirar o filho ao rio, e ele só foi detido pelos irmão que atenderam ao comando contrário do Ancião. Ele se tornou um monge proficiente depois de ter aprendido o valor da obediência como um meio de atingir a humildade.

- Um outro homem do mundo veio a Sisoés com seu filho, que havia morrido no caminho. O pai se prostrou diante do Abba, deixando lá o cadáver do menino. Pensando que o menino havia apenas falhado em se levantar após ter se prostrado, Sisoés ordenou-lhe que levantasse; o que ele fez, voltando à vida. Sisoés se assombrou com isso, pois não era sua intenção ressuscitar o morto; ele ordenou a todos que mantivessem silêncio sobre esse assunto enquanto ele vivesse.

- Um irmão que havia sofrido o mal de outro veio ver Abba Sisoés e lhe disse, ''meu irmão me magoou e quero me vingar''. O Ancião implorou, dizendo, ''Não, meu filho, deixe a vingança para Deus.'' O irmão disse, ''Não descansarei enquanto eu mesmo não me vingar.'' O Ancião respondeu, ''Irmão, vamos orar.'' Então se levantou e disse, ''Deus, não precisamos mais que tomes conta de nós, já que fazemos justiça por nós mesmos''. Quando o homem ouviu essas palavras, se prostrou diante dos pés do Ancião e disse, ''Não mais procurarei justiça para meu irmão. Perdoe-me, Abba.''

Sisoés morreu em uma idade avançada, no ano 429. Os detalhes de sua morte são famosos. À luz do 'Fédon', São Sisoés morreu como um verdadeiro filósofo e amante da sabedoria após se purificar e se tornar um templo iluminado do Espírito Santo: ''Quando São Sisóes se deitou em seu leito de morte, seus discípulos viram sua face brilhar como o sol. Eles perguntaram ao moribundo o que estava vendo. O Ancião respondeu que via Santo Antão, os Profetas e os Bem Aventurados Apóstolos. Seu rosto brilhava cada vez mais e ele conversava com alguém. Os monges perguntaram, ''com quem você está falando, Abba?'' Ele disse que os anjos vinham buscar sua alma e que ele estava pedindo um pouco mais de tempo para o arrependimento. Os monges perguntaram, ''Você não tem necessidade de arrependimento, Abba''. São Sisoés respondeu com grande humildade, ''Penso que nunca comecei realmente a me arrepender.'' Depois dessas palavras, o rosto do Santo Ancião brilhou ainda mais intensamente e a comunidade não foi mais capaz de olhar para ele. São Sisoés afirmou que via o próprio Senhor. Houve então um relampejar de luz, um suave odor, e o Santo Asceta partiu para o Reino dos Céus.''

A respeito do ícone de São Sisoés contemplando os ossos de Alexandre o Grande, não sabemos se retrata um acontecimento histórico. Não temos um registro histórico do que é descrito no ícone até que sua representação aparecesse em mosteiros gregos depois da queda de Constantinopla, em 1453.

Na inscrição do ícone pode-se ler:

''Sisoés, o grande asceta, diante da tumba de Alexandre, Rei dos gregos, que um dia esteve coberto em glória. Atônito, ele lamenta as vicissitudes do tempo e a transitoriedade da glória, e em lágrimas clama; 'A tua mera visão, ó tumba, consterna meu coração e o leva a derramar lágrimas, enquanto contemplo o débito que todos nós homens possuímos. Como posso suportar isso? Ó morte! Quem pode escapar de ti?'''

O assombro de Sisoés se tornou um ícone de contemplação para todos os cristãos, especialmente para os monges, desde o século XV e se espalhou de tal maneira que apareceu em centenas de igrejas e mosteiros gregos. Dois dos mais famosos se encontram no Mosteiro da Santíssima Trindade e no Mosteiro Varlaam, em Meteora. O lugar na igreja em que esse ícone aparece usualmente é o lado contrário da área do altar, onde as pessoas saem da igreja, e onde também se coloca o ícone da Dormição de Theotokos. Sabiamente é colocado ali para que os cristãos possam contemplar a morte enquanto saem da igreja.
Não se trata de uma coincidência que esse ícone tenha se tornado tão popular após a queda de Constantinopla.

Constantinopla, até então cidade do Imperador Romano desde os dias de São Constantino o Grande, sempre viu Alexandre como um dos mais exemplares governantes. De fato, essa era uma tradição de todos os Imperadores romanos. O historiador Dion Cássio [155-235] relata que depois de Augusto ter visitado o corpo de Alexandre em Alexandria, foi perguntado se desejava conhecer também as tumbas dos Ptolomeus, os soberanos do Egito do período helenista. Ele se recusou, dizendo: ''Vim para ver um rei, não um homem morto''. O governo universal romano era considerado uma herança dos Imperadores romanos recebida através de Alexandre.

Andrew Michael Chugg escreve em seu livro ''The Quest for the Tomb of Alexander the Great'': ''Era a mais respeitada e renomada relíquia no Império Romano, o objeto de veneração de Júlio César, Cleópatra, Otaviano, Calígula, Adriano, Severo, Caracalla e uma hoste de outros luminares. Permaneceu por séculos no interior de um recinto sagrado do tamanho de uma grande vila no coração da maior cidade grega do mundo. E ainda assim, no fim do século IV depois de Cristo, quando o Imperador Teodósio criminalizou o paganismo, desapareceu sem deixar rastro, criando o maior dos enigmas arqueológicos do mundo antigo. O que aconteceu com a tumba de Alexandre o Grande? Alguma parte dela sobreviveu? Ammianus Marcellinus relata um incidente ocorrido por volta de 361. O Patriarca Geórgio colocou uma questão retórica para a plebe alexandrina a respeito do templo esplêndido e elevado do Gênio de Alexandria: ''Quanto tempo essa tumba vai durar?'', perguntou. Por 'Gênio' Ammianus se referia à divindade tutelar da cidade, que poderia muito bem ser Alexandre. Certamente, Alexandre é a única figura a cuja tumba poderia ser aplicada a expressão. Poucos anos depois, em 365, Alexandria foi atingida por um terremoto fenomenal seguido por uma gigantesca tsunami, que provocou grandes danos nas regiões costeiras e cidades portuárias do Mediterrâneo oriental. Foi registrado que Alexandria foi abalada de modo particularmente duro, com navios sendo jogados em cima dos edifícios sobreviventes. Essa foi a ocasião mais provável da destruição do Suma Mausoléu. Um quarto de século depois, em mais uma referência reconhecível, Libânio de Antioquia mencionou em uma oração endereçada ao Imperador Teodósio que o cadáver de Alexandre estava à mostra em Alexandria. Isso se adequaria à eventual escavação da tumba, retirada debaixo das ruínas. Também oferece uma ocasião para a retirada do corpo do sarcófago, o que explica porque esse último foi descoberto em separado e vazio pela expedição de Napoleão. Um ano mais tarde, Teodósio outorgou uma série de decretos proibindo a adoração de deuses pagãos, dentre os quais Alexandre. Em Alexandria, os cristãos saquearam e destruíram o Serapeum, principal templo pagão. Esse foi o ponto em que contínua adoração do corpo do fundador teria se tornado excessiva para as autoridades alexandrinas. Foi o momento em que os restos de Alexandre desapareceram da história. No fim do século IV e início do século V, João Crisóstomo pôde afirmar em um sermão que a tumba de Alexandre era então ''desconhecida para seu povo'', ou seja, para os pagãos de Alexandria. Poucas décadas depois, Teodoreto listou Alexandre entre os homens famosos cuja tumba era desconhecida.''

À luz dessa informação, não é implausível que a representação de Sisoés lamentando sobre a tumba de Alexandre seja um evento histórico perdido para nós em forma documental mas que sobreviveu na iconografia. De muitas maneiras, a tradição iconográfica é mais confiável historicamente do que um documento escrito. Dado que Sisoés foi contemporâneo dos eventos descritos acima a respeito a destruição da tumba de Alexandre, acho difícil acreditar que um discípulo tão sábio de Santo Antão vivendo nos arredores de Alexandria não fizesse ao menos um comentário sobre o assunto.

A lamentação de Sisoés sobre Alexandre é também um lamento sobre uma ideologia. Não é coincidência que ambos carregassem o epíteto de ''Grande''. Certa vez, durante o governo romano que durou um milênio e meio, Alexandre foi um ícone do Império, mas agora que o Império havia chegado ao fim os romanos olhavam para os monges como única esperança da Ortodoxia sofredora sob os muçulmanos otomanos. É esse contexto que forma a mentalidade ortodoxa durante o período. Não quer dizer que não existisse antes, já que sempre foi parte da tradição cristã e monástica, mas agora Sisoés se encontrava vivo diante dos restos mortais de Alexandre, aprendendo a grande lição da vaidade da glória mundana. A glória romana pode ter se esvanecido, mas o Reino dos Céus dura para sempre.

Seria bom que os cristãos ortodoxos aprendessem hoje a partir desse ícone, e mantivessem o foco no que é verdadeiramente ''grande'' nele. Parece que houve tal reverência a Alexandre o Grande que tendemos a esquecer que ele é um herói morto que há muito não recebe emulação. Nossos verdadeiros modelos devem ser os sábios Santos, como Sisoés.



Nenhum comentário:

Postar um comentário